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A morte do ultimo defensor…

A morte do ultimo defensor da captura de mais valias urbanas.

Gravações extraídas do Processo n. 147/N em 26 de setembro de 2067 a serem anexadas ao pedido de indulto do prisioneiro XYZ.

“Terça-feira 25 de setembro de 2067. Finalmente recebi autorização do diretor do presídio onde me encontro encarcerado há mais de 19 anos para gravar no aparelho eletro neuro nuclear minha versão da infausta reviravolta política acontecida no mês de dezembro de 2052. Sou talvez o último sobrevivente do grupo de extermínio de recalcitrantes, que o então todo poderoso governo da coalizão (agora deposto) criou para eliminar definitivamente da face da terra a ideia, e quem a sustentasse, da captura de mais valias urbanas.

Minha saúde fraqueja e os médicos do presídio (não tenho acesso a outros), prenunciam minha morte em breve. Talvez a comida que me servem contribua para este desfecho. Não sei. Mas, tenho certeza que, ao contrário do resto da população, os alimentos que consumo são produzidos com as predatórias técnicas do final do século XX e início do século XXI: de origem transgênica e saturados de defensivos e fertilizantes químicos que, agora todos sabem, abrem as portas para enorme variedade de doenças especialmente o câncer.
Creio que para eles minha morte será um alívio. Para mim também. Imenso cansaço tomou conta do meu corpo e não nutro esperanças que me concedam indulto. Em todo caso resolvi pedi-lo: não gostaria de morrer cercado pelas paredes da cela asquerosa onde me encontro detido. Meu nome de batismo não é mais pronunciado: desde que fui preso passei a ser chamado por três letras do alfabeto. Por ser considerado prisioneiro perigoso me presentearam com as três finais, XYZ.

Enfim, minha versão dos fatos talvez contribua para futuras gerações entenderem o que aconteceu durante aquele turbulento período.

Sou acusado de dois crimes: de não ter matado e de ter matado uma pessoa. Vejam a contradição! Por não ter matado recebi uma pena de 20 anos. Depois quando já havia cumprido quatro, ocorreu a grande reviravolta. Mas, fui mantido na prisão, agora acusado de ter matado o ultimo defensor da captura de mais valias urbanas. Por este crime recebi a pena máxima de 50 anos de reclusão em regime fechado. Morrerei neste lugar imundo se não for indultado pelo novo governo de recalcitrantes, que derrubou o anterior e restaurou todas aquelas praticas nefastas contra as quais lutamos; luta que agora perdeu o sentido em vista do desenvolvimento espantoso que alcançamos nas ultimas três décadas.

Ocorre que fui condenado injustamente. Sou inocente, como mostrarei mais adiante neste depoimento.

Primeiro devo dizer que desconheço a intenção do diretor do presídio em conceder a permissão para esta gravação – negada nas 8 vezes anteriores em que foi pedida. Agora quando não há mais o perigo de retorno das questões que nos colocaram em campos opostos, o registro e eventual divulgação da minha versão dos acontecimentos talvez não faça a mínima diferença.

O fato é que a questão urbana deixou de ser uma questão. A população das grandes metrópoles encolheu drasticamente. A luta pela ocupação do espaço nas cidades desapareceu e na maioria das áreas centrais o preço da terra tornou-se negativo: hoje o governo paga para famílias ocuparem as edificações abandonadas no centro das cidades.

Aliás, o que antes chamávamos de “centro” não existe mais. O progresso na tecnologia do tele transporte avançou de tal maneira que a grande maioria das pessoas não necessita sair de casa – onde quer que ela se localize – para trabalhar, ou até se divertir. Quase tudo pode ser feito à distância. Apenas operações cirúrgicas mais complexas, a análise de crimes violentos, os confrontos esportivos e o combate a incêndios requerem a presença física de especialistas.

Morar “mais perto” de algum centro de atração já não significa qualquer vantagem. Ninguém paga mais por uma moradia em razão de maior ou menor distancia física do que se poderia chamar de centro. Onde não são negativos, os preços da terra tornaram-se irrisórios e as diferenças devidas à localização agora são mínimas. Inclusive a invenção dos anéis de fótons que permitem a projeção com um simples movimento digital, de qualquer imagem, (e reprodução sonora) em qualquer superfície – mesmo as irregulares – em tempo real, abriu as portas para a criação entre outras coisas de residências dotadas de “paredes e janelas paisagem”. Isto tornou indiferente viver em andares mais altos ou mais baixos. O diferencial de preços antes existente desapareceu: a vista do ultimo andar pode ser a mesma existente no primeiro!

O gigantesco domínio de novas fontes de energia – a interestelar fundamentalmente – ajudou a baratear de forma sem precedentes a produção de bens e serviços. O aquecimento global foi revertido e, o mais importante: agora somos capazes de controlar o clima.
A produtividade agrícola aumentou mais de dez vezes: em apenas um terço da área agrícola antes cultivada se produz três ou quatro vezes mais!

A agricultura de precisão, isto é, aquela orientada por sensores que afastam animais e insetos predadores portadores de pragas e estabelecem a quantia exata de umidade, nutrientes etc. que cada planta precisa para obter um máximo rendimento permitiu outro salto na produtividade e na redução de custos.
O drástico encolhimento da população, associado ao espantoso aumento da produtividade provocou uma retração inédita no preço dos alimentos e das matérias primas agrícolas. A produção de minérios também tornou-se muito mais barata: agora é realizada no fundo dos oceanos próximos da costa e exceto países que não tem acesso ao mar, todos tornaram-se auto suficientes em relação às matérias primas metálicas mais importantes.

A demanda por terras urbanas e rurais, antes em expansão registrou uma retração profunda, e os preços, como já assinalei, no caso urbano, tornaram-se negativos: para estimular a reocupação de áreas centrais abandonadas de grandes cidades (o que diga-se de passagem já começara a surgir no inicio deste século), as Prefeituras passaram a pagar para que famílias as reocupassem… ops! a gravadora informa que eu estou me repetindo, que já disse isso anteriormente …!

A ciência e a tecnologia também resolveram o problema do desequilíbrio demográfico.
Hoje vivemos em média até os 115 anos: o antes inviável transplante de coluna vertebral tornou-se possível, e um dos grandes obstáculos à longevidade foi superado. Estou com 77 e se o atual governo não tramasse minha morte poderia viver mais uns 30 ou 40 anos, de preferência em liberdade…

O desaparecimento do bônus demográfico – numero de crianças e velhos menor do que o numero de pessoas em idade produtiva – isto é, o envelhecimento da população e a escassez de jovens para cuidá-los foi resolvida pelos robots enfermeiros; embora ainda não acessíveis a toda a população tornam-se cada vez mais baratos, e em pouco tempo acontecerá com eles o mesmo que sucedeu com os automóveis, os computadores e os telefones celulares ( hoje peças de museu): todos poderão ter um, ou até mais de um.

Curiosamente os robots cuidadores de crianças foram um fracasso comercial: não induziram ao aumento da natalidade como muitos acreditaram e…as empresas que os fabricavam, faliram. Aliás, o desalento no numero de nascimentos deveu-se também à drástica redução do numero de encontros amorosos com fins reprodutivos, antes denominado de casamento. Os jovens agora dão preferência aos encontros à distância: por meio de aparelhos simulam e realizam o ato físico do amor sem necessariamente sair de casa. Outros preferem as chamadas transas de gênero neutro, isto é pessoas que se gostam, mas não sabem de antemão qual é o gênero ou opção sexual do outro o que só se revela quando o ato sexual se consuma, ou não se consuma… Dizem que isto se reveste de imensa emoção em função da surpresa e da incerteza, da quebra do tédio de populações inteiras que aliviadas da carga de batalhar por sua manutenção e sobrevivência saem em busca de novas sensações e experimentos. Mas, não estou bem certo se isto é realmente verdade uma vez que meu relato se baseia nas informações de alguns robots carcereiros mais extrovertidos, pois não tenho contato com o mundo exterior há cerca de duas décadas.

A energia interestelar – a luz das estrelas pode ser hoje transformada em energia, além da dupla sol e lua, e da refletida pelos planetas – permitiu que os governos eliminassem quase todos os tributos e financiassem suas atividades com um imposto único incidente sobre o uso de energia.

Não aquele preconizado por um recalcitrante norte-americano do fim do século XIX que preconizava o confisco da renda da terra e que inspirou muitos defensores da captura de mais valias urbanas.

Aliás, sobre este autor gringo devo relatar um fato curioso. Quando fui preso, antes dos recalcitrantes retomarem o poder, me colocaram numa cela na companhia de um professor universitário que acreditava na captura de mais valias urbanas e que admirava as teses desse tal de Henry George. Para passar o tempo conversávamos muito sobre estas teses (a meu ver equivocadas) e à certa altura o professor me disse algo interessante: gravei na memória como curiosidade, mas o que ele afirmou tinha uma significação sintomática.

Segundo meu companheiro de cela a origem Greco-romana do nome do recalcitrante de certa maneira contrariava suas próprias teses. Henry seria o correspondente latino de Enricco, que significa “aquele que enriquece”, e George teria origem no grego, Geo que significa terra, e Ergon que significa trabalho, ou seja “aquele que trabalha a terra”. Minha perplexidade foi em saber que com este nome – “aquele que enriquece trabalhando a terra”- ele propunha o confisco da renda da terra! Ou seja, o enriquecimento daqueles que trabalham a terra, os fazendeiros proprietários de terra rural seria bloqueado por esta nefasta ideia do imposto único!

Voltemos ao nosso tema.

A energia (limpa) tornou-se tão barata e abundante, que seu monopólio pelo Estado permitiu o lançamento de um imposto único e altamente progressivo o que resolveu o problema fiscal e eliminou o endividamento de quase todos os municípios, especialmente os pertencentes às áreas metropolitanas.

Outra invenção interessante, sinal do enorme progresso cientifico e tecnológico das ultimas décadas foram os processadores eletro neuro nucleares. Os de ultima geração – como este que estou usando – tornaram as gravações de imagem, som e, até de aromas – se for necessário – infinitamente mais fidedignas. São tão precisos que se um deles suspeitar que alguém esta mentindo – alterações antes imperceptíveis dos batimentos cardíacos, e da pressão interna dos neurônios revelando a intenção do depoente de fugir à verdade – a máquina recusa-se a prosseguir gravando.

Esta ameaça não me atinge, pois não há razão para mentir. Meu único temor é que depois de tanto tempo, a memória claudica (presidiários não tem acesso às tecnologias de restauração de memórias humanas), e talvez não consiga distinguir entre o que realmente aconteceu e o desejo do que tivesse acontecido.

Mas, vamos aos fatos.

Entre 2037 e 2042 a União dos Proprietários Ruralistas (UPR) aliada à União dos Grandes Proprietários Urbanos (UGPU) tornou-se um partido internacional obtendo grandes vitorias eleitorais na maioria dos países latino americanos. Estes dois agrupamentos formados discretamente a partir dos primeiros anos deste século como reação às leis aprovadas na Colombia e no Brasil, respectivamente a 388 de 1998, e a 10.257 de 2001 esta ultima mais conhecida como Estatuto da Cidade.

O crescimento deste grupo político que defendia a propriedade territorial privada seja urbana ou rural, foi inicialmente pequeno. Mas, se intensificou dramaticamente quando entre 2013 e 2016 outros países inspirando-se na legislação brasileira e colombiana aprovaram leis que permitiam interferência intolerável no direito de propriedade.

Chamo a atenção para alguns casos. A Lei equatoriana que calcada nas leis do Brasil e da Colombia utilizava mecanismos muito contrários aos nossos interesses: além de permitir que os governos municipais praticassem a outorga onerosa se concedessem aos proprietários de terrenos direitos de construir adicionais estabelecia, por exemplo, o chamado “Anuncio do Projeto”, que consistia no seguinte: se o governo anunciasse a realização de uma obra, os preços de desapropriação das áreas necessárias ao mesmo seriam considerados como aqueles vigentes antes do anúncio.

Ou seja, a valorização de terrenos particulares passaria a ser apropriada pelo estado e não mais por seus justos receptores, os proprietários dos terrenos localizados na área objeto da obra. Outro dispositivo declarava zonas de construção prioritária e os proprietários eram obrigados a não deixá-las ociosas, isto é, a edificar num prazo máximo de 3 anos, caso contrario poderiam ser expropriados com títulos da dívida publica e não mais em dinheiro! Sem falar da elevação exponencial do imposto predial para quem não edificasse nesse prazo.

A mudança de uso de rural a urbano passaria também a ser onerosa, e vejam o absurdo: os causadores da expansão urbana que avança sobre as áreas periféricas e exige cada vez mais terras para seu uso, não são os fazendeiros, mas quem pagaria pelas consequências da expansão, sim seriam eles!

Em algumas zonas declaradas de interesse social somente se poderia construir moradia para os pobres. As concessões de direitos de construir deveriam ser, como nos caso brasileiro e colombiano, onerosas e os recursos obtidos utilizados nos investimentos em obras de infraestrutura e construção de moradias para favelados.
Vejam vocês que o problema das favelas – originadas na migração campo cidade – seria resolvido à custas dos proprietários de terras que não são os responsáveis por tais migrações!

Esta lei aprovada pelo governo equatoriano foi a demonstração mais evidente da influencia exercida pelas leis brasileira e colombiana: se nada fosse feito o vírus da outorga onerosa, da captura de mais valias continuaria se espalhando por todos os países latino americanos e de outros continentes e isso seria nossa perdição.

Na verdade a infecção já havia atravessado outras fronteiras.

Na Argentina foi aprovada uma lei estadual – para a província de Buenos Aires – de numero 14.449 denominada “Ley de Acceso Justo al Habitat” estabelecendo, como no caso colombiano, a repartição equitativa de cargas e benefícios. Uma dessas cargas era a cessão de área para a construção de moradia para os pobres nos projetos de desenvolvimento urbano de iniciativa do setor privado superiores a 5.000m2 de área.

Em termos mais concretos, o empreendedor deveria ceder 10% de sua gleba para edificação de moradia para os pobres ou o seu equivalente em dinheiro que seria utilizado com a mesma finalidade. Uma lei nacional contendo princípios idênticos, e outros ainda mais invasivos, estava sendo discutida naquele país quando nossa influencia começou a se fazer sentir com mais força e conseguimos bloquear a iniciativa mesmo antes de alcançarmos o poder.

O Uruguai também foi contaminado pelo vírus do intervencionismo e fez aprovar uma lei de n. 18.308 de “Ordenamiento Territorial y Desarrollo Sostenible”, que entre outras coisas trazia as famosas distribuições equitativas de cargas e benefícios (que na verdade eram só cargas para os proprietários) e permitia a recuperação dos “maiores valores imobiliários gerados pelo ordenamento do território”, isto é, permitia a captura de mais valias criadas pelo desenvolvimento urbano.

No Perú iniciativas legislativas, embora menos intrusivas, também surgiram e estavam se transformando em dispositivos legais: em dezembro de 2014 a Prefeitura de Lima aprovou a Ordenanza 1869 que permitia a transferência de direitos de construir de um ponto para outro da cidade. A transferência de direitos de construir não colidia com nossos interesses uma vez que o instrumento reconhecia que tais direitos de construir, ao serem transferidos pertenciam ao proprietário e não ao poder público. Mas, os espertinhos influenciados por recalcitrantes internacionais conseguiram aprovar que a dita transferência somente ocorreria naqueles direitos de construir não utilizados até o limite de um coeficiente básico que era bem baixo! Isso transformava o mecanismo em algo próximo ao confisco e que praticamente não rendia nada para o proprietário. Felizmente conseguimos impedir que este disparate se consolidasse e o tornamos inoperante.

No México, país bastante refratário a estas práticas onde não tínhamos tido problemas maiores, a transformação da Cidade do México D.F. em estado exigiu a aprovação de uma nova constituição estadual.

Contaminados pelo vírus da outorga onerosa alguns juristas mexicanos lançaram uma nova interpretação do artigo 27 da Constituição Nacional que dizia o seguinte: “A Nação terá o direito de impor à propriedade privada as modalidades ditadas pelo interesse publico, assim como o de regular, em benefício social, o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de apropriação, com o objetivo de realizar uma distribuição equitativa da riqueza pública…”

Estes juristas afirmavam que o ar que circulava sobre os terrenos privados era um desses “… elementos naturais suscetíveis de apropriação”, e por tanto uma vez apropriados pelo estado poderiam ser concedidos ao proprietário privado mediante o pagamento de uma contrapartida.

Vejam o absurdo desta tese! O proprietário teria que pagar pelo ar que circula em cima de seu terreno, pois, tratando-se de um elemento natural “suscetível de apropriação” poderia ser apropriado pelo poder público e depois concedido de forma onerosa aos proprietários de terrenos sobre os quais este ar circula!
Alegavam estes juristas que a propriedade do solo se limitava à propriedade de sua superfície, e não ao que estava encima ou embaixo. Mas desde que o mundo é mundo, como diziam os romanos a propriedade fundiária compreendia “usque ad coelum et ad ínferos”, ou seja o dono de um terreno é também proprietário de tudo que existe encima e embaixo dele, desde o céu até o inferno. As palavras em latim ( que aprendi na prisão) que expressam corretamente o que é a propriedade privada estavam sendo vilipendiadas por estes nefastos juristas.

Se esta tese destrambelhada prosperasse em pouco tempo teríamos que pagar pelo ar que respiramos por tratar-se de um “elemento natural suscetível de apropriação”.

De acordo com esta linha de pensamento eles tentaram incorporar na nova Constituição um artigo dizendo o seguinte: “Los incrementos en el valor del suelo derivados del proceso de urbanización, se considerarán parte de la riqueza pública de la ciudad”.

É fácil perceber que além de se apropriar de tudo que repousava ou circulava ( e os pássaros?) sobre a terra estes juristas desejavam também criar dispositivos para que o estado se apropriasse de toda e qualquer valorização que uma gleba pudesse ter!

Essa discussão era preocupante, pois o México (e o Chile depois de 1973), sempre foi um dos países onde mais se considerava o direito de propriedade privada como algo absoluto. Nestes países tais conceitos de captura de mais valias e outorga onerosa nunca tiveram guarida sequer nos meios universitários. A muralha começava a apresentar rachaduras. A nova discussão possuía uma significação sintomática. O estribilho da moda começava a ser cantarolado também na terra do Cantinflas! Muito preocupante!

Mas, a luz vermelha foi realmente acendida quando em 2019 o Congresso brasileiro aprovou uma reforma tributária tornando o ITR (Imposto Territorial Rural) um imposto com caráter fiscal( e põem fiscal nisso), e não somente um instrumento de indução ao aumento da produtividade como havia sido até então. Foi a gota d’agua.

Até aquele momento, apesar da cobrança de contrapartidas econômicas caso ocorresse mudança de uso de terras rurais para urbanas, dispositivo existente em algumas dessas legislações ditas “progressistas”, a UPR mostrava-se refratária a uma aliança com a “elite da cidade”.
Em outras palavras, a aliança com seus irmãos latifundiários urbanos cujo direito de propriedade vinha sendo cada vez mais limitado com a separação na pratica do direito de propriedade do direito de construir ainda era vista apenas como uma possibilidade. Mas, passou a ser algo necessário quando os proprietários rurais sentiram na pele, ou melhor dizendo, no bolso, o novo imposto que o governo lhes obrigava a pagar. Agora, a aliança campo cidade tornava-se algo imprescindível para a própria sobrevivência do setor.

O novo imposto feria o principio da propriedade privada ao cobrar por um bem que não necessariamente produzia renda: boa parte dos 200 milhões de hectares incorporados à agricultura e à pecuária nas últimas décadas no Brasil, mais precisamente desde 1985, não estavam sendo cultivados à espera que obras de infra estrutura, prometidas pelo governo fossem construídas para garantir a exploração produtiva da terra.
A valorização das áreas adjacentes, antes da construção das obras eram causadas pelas expectativas e não tinha sentido que o governo se apropriasse via impostos dessa valorização se as terras ainda não estavam sendo cultivadas por falta de meios de escoamento da produção! E o ITR agora incidia sobre o valor de mercado das terras rurais e não mais sobre seu valor cadastral.

Os líderes da UGPU reclamavam também que o conceito implícito em todas as legislações da separação do direito de propriedade do direito de construir que iam aparecendo como cogumelos na floresta na Guatemala, na Nicaragua, no Panamá e até em El Salvador, era falso.
Embora falso, o conceito embutia uma concepção radioativa que prejudicava a saúde dos negócios fundiários e contrariava a natureza das coisas: se a propriedade é de alguém, mas o direito de construir pertence ao estado, para que serviria a propriedade? Ela nada vale – no caso urbano – se a autorização para construir depender de outrem! No campo, a autorização para plantar não depende de ninguém! Como se fosse possível retirar o couro de um animal sem provocar-lhe a morte! Estas legislações subversivas separavam o que não podia ser separado.

Além disso, outra doutrina que se espalhava perigosamente era a de que expectativas não geravam direitos: a porta se abria para a retirada de direitos de construir possuídos por proprietários de terrenos vacantes, mas ainda não utilizados.

Tudo em nome, como afirmavam estes dirigentes do “interesse público”.

A insegurança jurídica provocada por tais desmandos resultava via de regra na paralisia dos negócios imobiliários, e a culpa era lançada erroneamente sobre aqueles que nada de errado haviam feito: apenas se recusavam a vender seus terrenos por um preço mais baixo agora que seus lotes possuíam menor capacidade construtiva e eram obrigados a pagar as famosas “cargas urbanísticas”.

E, cúmulo da desfaçatez: para retornar à capacidade construtiva adicional, ou ir além – e este era o grande atrativo para os empreendedores imobiliários especialmente os de São Paulo deslumbrados com um instrumento insidioso chamado CEPAC – deveriam pagar contrapartidas econômicas ao governo.

Ou seja, eram obrigados a comprar outra vez o que originalmente lhes pertencia! Melhor definição de confisco seria difícil de encontrar.

Ocorre que a maior parte dos empreendedores imobiliários eram ao mesmo tempo grandes proprietários de terrenos à espera de valorização e de boas oportunidades de investimento. Portanto, as cargas que os governos na America Latina estavam impondo sobre os terrenos afetava imediatamente o patrimônio destes empresários, uma vez que os proprietários e estes últimos eram como unha e carne, uma só pessoa.

Todas as demandas judiciais apresentadas pelos dirigentes do UGPU contra tal ordenamento jurídico esbarravam em Tribunais formados por juízes que pouco a pouco foram sendo favoráveis a estas novas legislações e abordagens. Diziam que tinham respaldo em dispositivos Constitucionais dos diversos países especialmente ancorados na “função social da propriedade”.

Nós só reparamos tardiamente que na maioria das Constituições dos países da região estava lá estampado com a maior clareza este infeliz principio. Mas até aquele momento ninguém tinha levado isso muito a sério. Tratava-se agora de eliminar este dispositivo, como de fato fizemos quando assumimos o poder.

Em suma, esta nova legalidade asfixiava a propriedade privada, e como dizia um grande latifundiário do século XIX, “se a legalidade nos asfixia, asfixiemos a legalidade!”.

Sim, disso se tratava. Mas, como fazê-lo se nossos tradicionais aliados do norte já não mais patrocinavam intervenções militares, impedindo que o problema fosse resolvido pela via rápida?

A alternativa, como sabemos, consistiu na utilização de meios legais para acabar com a legalidade que nos oprimia. Ganhar eleições, eis aí a solução para, num momento seguinte, acabar com elas. Primeiro obter maiorias no âmbito parlamentar e depois no executivo e finalmente mudar a composição do judiciário. Um trabalho paralelo com as Forças Armadas também foi feito para evitar que algum comandante desmiolado se apressasse e tentasse um golpe militar fora de época.

Com mudanças nas leis e no Judiciário a propriedade imobiliária poderia voltar a ser protegida de maneira digna e as leis, especialmente as da Colombia e do Brasil liminarmente revogadas pagando-se aos afetados por elas nos últimos 30 anos justas indenizações por danos morais e lucros e/ou ganhos especulativos cessantes.

Diante desta perspectiva a união entre o UGPU e a UPR ganhou força. Mas, outra questão deveria ser resolvida: como financiar esta ousada operação? Embora ricos, os sócios destas entidades não estavam dispostos a colocar dinheiro do próprio bolso na duvidosa empreitada. Desacostumados a enfrentar incertezas e perder dinheiro em investimentos muito arriscados, se fosse para apostar, sempre o faziam em cavalos de antemão vencedores: a valorização das terras urbanas ou rurais havia sido sempre um jogo sem risco, os participantes do lado da propriedade sempre ganhavam.

Quando começaram a articular suas forças o desfecho era ainda incerto, e por tanto os recursos não fluíram com generosidade. Mas, seus contatos internacionais os aproximaram de representantes dos governos da China e da Arábia Saudita que embora cheios de dinheiro atravessavam sérios problemas de abastecimento de alimentos, depois que sucessivas crises climáticas locais tornaram a escassez de grãos um verdadeiro flagelo e obrigaram estes países a depender quase exclusivamente das importações.

No caso saudita a exaustão das águas subterrâneas utilizadas na irrigação significava uma enorme pressão sobre a importação de grãos e alimentos de origem animal como fontes de proteínas. No caso chinês, além dos problemas climáticos, as escassas terras agricultáveis estavam sendo disputadas para outros usos, especialmente os urbanos, e a busca de fontes de alimentos também os induzia a garantir o abastecimento baseados em áreas localizadas mais além de suas fronteiras. Começaram a adquirir terras em outros continentes e neste caldo de cultivo as discussões com as entidades representativas dos donos de terras nos países latino americanos prosperaram.

O primeiro passo foi o financiamento da eleição de parlamentares favoráveis à eliminação das restrições impostas a estrangeiros na aquisição de enormes áreas especialmente no campo, mas também nas cidades.
Esta foi a primeira vitória, seguida de muitas outras e a sinergia gerada provocou um fluxo de recursos cada vez maior para eleger não apenas parlamentares, mas também prefeitos, governadores e finalmente o Presidente da República.

Ás conquistas no Legislativo e no Executivo foram seguidas de mudanças radicais na legislação e na composição dos Tribunais Superiores. Muito dinheiro foi oferecido a juízes pouco colaborativos tanto para que se aposentassem precocemente e abrissem vagas para magistrados afinados com a defesa da propriedade territorial, e/ou para mudar de opinião…

A maioria dos juízes dos tribunais relevantes passaram a ser totalmente favoráveis a tese de que o direito à propriedade territorial devia ser absoluto e inviolável. O conceito de função social da propriedade foi eliminado das Constituições na maioria dos países latino americanos e no caso de terras urbanas, a nova legislação e os tribunais passaram a considerar que o direito de construir era intrínseco ao direito de propriedade: o poder público não poderia mais cobrar se alguém quisesse construir além de um coeficiente básico, dispositivo que aliás deixou de existir com a revogação do Estatuto da Cidade no Brasil e da lei 388 na Colombia, sendo que a nova lei no Equador, inspirada nas duas mencionadas anteriormente embora aprovada não chegou a ser sequer utilizada por governadores e Prefeitos.

Apesar de todos estes avanços ainda restava uma tarefa muito importante a ser resolvida: as antigas concepções, as ideias subversivas contra a propriedade privada surgidas durante os anos 70 e 80 do século XX na América Latina continuavam ainda na cabeça de alguns intelectuais e de uns poucos servidores públicos. Estes últimos foram demitidos sumariamente de suas funções. Professores universitários, é verdade, durante algum tempo esconderam suas convicções para não perderem o emprego. Mas, por sorte já estavam sendo identificados pelos órgãos de segurança do novo governo por intermédio de interrogatórios monitorados pelos gravadores eletro neuro nucleares.

Os recalcitrantes haviam enviado uma quantidade imensa de bytes para a “nuvem” contendo todas as informações possíveis e imagináveis de tudo relacionado com a captura de mais valias urbanas e era também imprescindível eliminar estes vestígios: como palha seca poderiam originar, no futuro incêndios a qualquer tempo, bastando um fagulha…

Depois de pulverizar tudo o que se encontrava na nuvem a até nas obsoletas bibliotecas que conservavam textos em papel, os novos governantes achavam que para extirpar o mal pela raiz, isto é, das pessoas, existiam dois caminhos: convencê-las das novas concepções, ou não sendo possível elimina-las sumariamente, isto é, exterminar fisicamente os recalcitrantes.

A maioria dos que mantinham ainda as concepções antigas foi de fato convencida que estava errada. É verdade que isto custou pressões e ameaças, dentre estas especialmente a perda do emprego nas universidades e o corte no financiamento de pesquisas, sem falar das insinuações sobre as respectivas integridades físicas e/ou internação por longos períodos em colônias correcionais. Mas, um grupo permaneceu fiel às ideias subversivas e com eles não houve contemplação: deveriam ser eliminados ou enviados às masmorras.

Com ampla maioria parlamentar, o governo fez aprovar uma legislação permitindo o fuzilamento “in loco” ( a lei dizia on line…), isto é o extermínio onde fossem encontrados. A proposta de abrir campos de extermínio para os recalcitrantes foi rapidamente descartada. É claro que ainda concedíamos a eles uma última chance de conversão antes do disparo de misericórdia. Mas, se não houvesse manifestação do acusado, seu coração deveria deixar de bater (como rezava a legislação, o que causava a morte não era a bala, mas o fato do coração deixar de bater).

Após cinco anos de vigência da nova lei quase todos os recalcitrantes haviam sido exterminados. Diante da morte iminente, uns poucos, de joelhos abandonavam suas concepções subversivas e imediatamente passavam a fazer parte destes grupos de extermínio, pois sabiam identificar mais facilmente quem eram, e onde estavam os ainda recalcitrantes.

Para serem admitidos estes cristãos novos deveriam eliminar fisicamente pelo menos um de seus antigos companheiros: este era o pedágio para mudar de lado e para não morrer ou em casos mais raros serem condenados à longas penas.

Em agosto de 2049 duas notícias, até certo ponto contraditórias chegaram simultaneamente ao Alto Comando das Forças Vigilantes do Sagrado Direito da Propriedade Privada: a primeira dava conta que todos os recalcitrantes haviam sido finalmente exterminados; a segunda retificava a primeira informando que um deles ainda permanecia vivo numa cidade do interior do Brasil.

Esta segunda noticia informava também qual era a cidade e o endereço onde se encontrava o elemento; solicitava a ida de um grupo de extermínio para acabar com a raça do desalmado.

É bom lembrar que na mesma proporção do desaparecimento dos recalcitrantes, os grupos de extermínio haviam sido quase totalmente desativados.

Mas, o governo ainda mantinha alguns em ação para enfrentar emergências. Enviou um dos mais eficientes – do qual eu participava – para realizar aquela ultima tarefa. O grupo se reuniu e recebendo a missão preparou-se para cumpri-la sem demora. Encontraram o ultimo recalcitrante no quarto de uma pensão debruçado sobre uma escrivaninha redigindo, a mão! alguma coisa à luz de velas. Quando o grupo invadiu o aposento ele não demonstrou surpresa. Virou-se vagarosamente para o grupo de invasores, e olhou como quem aguarda uma visita indesejável.

O chefe do nosso grupo de extermínio lhe dirigiu a pergunta clássica: “Você renega suas concepções subversivas sobre a propriedade privada?” O último recalcitrante lançou uma mirada sem ódio para seus algozes e permaneceu em silencio. O chefe do grupo de extermínio não repetiu a pergunta. Engatilhou sua arma e disparou contra ele. Sua cabeça caiu sobre o que acabava de escrever. Neste instante, com a mesma velocidade da bala, um pensamento atravessou a mente daquele que a disparou: “Será que ele não tinha razão?”

Com força gigantesca, o pensamento se expressou em voz alta. Pecado mortal. Seus companheiros – outros quatro e entre eles eu – tinham ordem para punir com a morte qualquer membro do grupo que vacilasse nestes momentos cruciais. Este era o maior perigo nestas operações de extermínio: a dúvida que poderia surgir ma cabeça dos carrascos na hora da execução.

Diante de algo tão inesperado confesso que vacilei. Não liquidei imediatamente nosso chefe como deveria ter feito e ele ciente da sentença que agora pairava sobre sua cabeça conseguiu fugir. Desapareceu como por encanto.
Não sem antes recolher os escritos do subversivo morto. Muito tempo depois, quando foi capturado e imediatamente morto, já era tarde. O vírus das antigas concepções se espalhara. Auxiliado pelas anotações em papel do homem que havia matado (os recalcitrantes não faziam mais registros por meios eletrônicos nucleares de medo de serem identificados) ele conseguiu um código criptografado de material ainda remanescente na nuvem e por intermédio dele articulou novos grupos de defensores da captura de mais valias.
Estes grupos se multiplicaram como amebas. Foi impressionante! Com espantosa rapidez conseguiram acumular forças e derrubar o governo da coalizão que tão bons serviços prestara à causa da defesa dos direitos absolutos da propriedade privada da terra.
Tudo mudou tão velozmente que não fui solto por ter poupado a vida do chefe do grupo de extermínio de recalcitrantes. Ao contrário, lançaram sobre mim a acusação de também ter atirado no último dos crentes na captura de mais valias e me condenaram a 50 anos de prisão em regime fechado.

As testemunhas a meu favor já não estão mais vivas, mas todo mundo sabe que propositalmente deixei o chefe do nosso grupo escapar, pois no fundo também concordava….”

Um ruído estranho e uma luz vermelha começou a piscar. A gravadora parou de funcionar.

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